Avançar para um projeto em Israel/Palestina é avançar para e por terreno minado. As minas começam na linguagem. Escolho, como alguns outros, esta designação (i/p) porque considero igualmente válidas as reivindicações de legitimidade dos diferentes projetos - nacionais, estatais, identitários, comunitários, de libertação, etc. "Válidas" não se refere aos ideários políticos e às estratégias para os atingir (os projetos de uma extrema-direita nacionalista em israel ou os de um Hamas ou Hezbollah repelem-me). Refere-se, antropologicamente, à crença e à convicção de quem os defende e com eles constrói identidade. Mas mesmo com esta postura, o terreno não se desmina. Entrar "por Israel" - pelas suas instituições, ou por redes sociais de lá - ou entrar "pela Palestina" marca logo divisórias: corre-se o risco de se ser mal visto do lado oposto. Corre-se também o risco de se ser vigiado e catalogado e desafiado pelo espírito dicotómico absoluto que domina grande parte das opiniões sobre aquele terreno. Provavelmente tanto (e às vezes mais) cá e no resto do mundo do que lá. Israel/Palestina tornou-se num símbolo, num drama, num veículo, num ventríloquo para falar de posições ideológicas, visões do mundo, preconceitos, e utopias. Além de ser provavelmente a epítome das contradições da modernidade (e daí ser um terreno tão fascinante e desafiador) e dos seus projetos estatais, nacionais, étnicos, religiosos, territoriais, etc.
E lá as pessoas, de "um lado" ou "do outro" vivem sobredeterminadas pelo conflito israelo-palestiniano. Neste quadro seria de esperar que um antropólogo avançando por aquele terreno também partilhasse de tudo isto, ou por tudo isto fosse marcado à partida. Isso é mais ou menos inescapável (estaria a escrever isto se assim não fosse?), mas o potencial da ciência, o da ciência social em particular, e o da antropologia em particular, está em romper com o senso-comum, com as categorias recebidas, e promover a suspensão dos automatismos do pensamento e da classificação. É isso que quero fazer, mesmo não sabendo se o conseguirei. Não quero que a formatação do meu possível futuro trabalho de pesquisa seja passivamente escrava dessa sobredeterminação. Prefiro imaginar a possibilidade de, em vez de começar "por cima" - pelos termos do debate sobre o conflito, pelas instituições políticas, pelos ativismo - começar "por baixo", isto é, pelas pessoas "banais" que vivem com e apesar da sobredeterminação do conflito e das narrativas e discursos em seu torno. Colegas, leitores, pessoas cá e pessoas lá em ambos "os lados" tenderão a perguntar, a suspeitar (ou até a tirar conclusões abusivas a partir de pedaços soltos de informação) sobre "de que lado estou". E a isso respondo que os termos da pergunta estão a meu ver errados. E a isso procurarei responder explorando a diversidade e multiplicidade de "lados" em cada um dos "lados", procurando as identidades complexas, ambíguas e contraditórias que necessariamente existem em virtude das várias pertenças e diferenças por ideologia, género, classe, etnicidade, religião, sexualidade, etc - na infinita variedade de narrativas pessoais e histórias de vida singulares. Desarticuladas da tal "sobredeterminação"? Claro que não. E numa perspetiva que elida o desequilíbrio de forças, as injustiças, as crueldades? Claro que não. Sempre fiz uma antropologia engajada e continuo a crer que os mais fracos têm menos voz. Mas as fraquezas identificadas nas vidas concretas, devidas a variáveis bem mais complexas do que as da dicotomia, são ainda mais difíceis de identificar, e pedem mais voz, do que o grande chapéu-de-chuva da desigualdade local.
Ir para um terreno como Israel/Palestina reproduzir simplesmente as tomadas de posição globalizantes sobre quem tem razão seria pobre, e do ponto de vista de um trabalho antropológico seria mesmo patético. Ir mais fundo do que o discurso dominante significa sair dos limites da sua enunciação. Significa assumir uma postura realista, dizendo: aqui vive gente; e esta gente é mais rica do que as etiquetas e tem mais vida do que o conflito e a narrativa global a que deu azo. E significa pegar nos problemas das "minas" pelos cornos, como objeto de reflexão ele mesmo. Não, não me perguntem "de que lado estou". Perguntem-me o que penso sobre a invasão do Líbano, o caso da flotilha, ou um ataque terrorista a um autocarro e eu direi o que acho - direi como sou contra o terror dos estados e o terror dos movimentos de libertação. Como direi que sou a favor de soluções que garantam a autodeterminação e a dignidade a israelitas e palestinianos, como sou a favor da laicidade e da democracia, como sou a favor de mais igualdade económica e social. Como direi que sei haver pessoas, de "um lado" e "do outro" que pensam o mesmo, e todas elas sabendo que, se por um lado o desequilíbrio de forças é muito grande, por outro as ameaças percecionadas por cada "lado" são de natureza diferente.
Que seja necessário este relambório, que eu sinta necessidade de escrever este chorrilho de pensamentos mais ou menos caóticos, é em si mesmo um sinal da especificidade, da densidade, da intensidade daquele terreno - sobretudo para quem lá vive, mas também para o resto do mundo que vive israel/palestina como um dos principais problemas não-resolvidos e um recurso narrativo e de posicionamentos "para lá" do próprio lugar. Contornar as minas, as armadilhas da linguagem, da acusação, da manipulação, da sedução, do pré-juízo, começa e acaba com a busca de outras linguagens, de outros termos em que as questões sejam colocadas, num difícil equilíbrio entre isto e o reconhecimento da referida sobredeterminação e a confrontação com a visibilidade dos dramas e injustiças. Mas quem disse que a ciência era fácil, sobretudo se humana, marcada pelo pensamento crítico e aberta às vozes múltiplas e concretas de pessoas concretas?
E lá as pessoas, de "um lado" ou "do outro" vivem sobredeterminadas pelo conflito israelo-palestiniano. Neste quadro seria de esperar que um antropólogo avançando por aquele terreno também partilhasse de tudo isto, ou por tudo isto fosse marcado à partida. Isso é mais ou menos inescapável (estaria a escrever isto se assim não fosse?), mas o potencial da ciência, o da ciência social em particular, e o da antropologia em particular, está em romper com o senso-comum, com as categorias recebidas, e promover a suspensão dos automatismos do pensamento e da classificação. É isso que quero fazer, mesmo não sabendo se o conseguirei. Não quero que a formatação do meu possível futuro trabalho de pesquisa seja passivamente escrava dessa sobredeterminação. Prefiro imaginar a possibilidade de, em vez de começar "por cima" - pelos termos do debate sobre o conflito, pelas instituições políticas, pelos ativismo - começar "por baixo", isto é, pelas pessoas "banais" que vivem com e apesar da sobredeterminação do conflito e das narrativas e discursos em seu torno. Colegas, leitores, pessoas cá e pessoas lá em ambos "os lados" tenderão a perguntar, a suspeitar (ou até a tirar conclusões abusivas a partir de pedaços soltos de informação) sobre "de que lado estou". E a isso respondo que os termos da pergunta estão a meu ver errados. E a isso procurarei responder explorando a diversidade e multiplicidade de "lados" em cada um dos "lados", procurando as identidades complexas, ambíguas e contraditórias que necessariamente existem em virtude das várias pertenças e diferenças por ideologia, género, classe, etnicidade, religião, sexualidade, etc - na infinita variedade de narrativas pessoais e histórias de vida singulares. Desarticuladas da tal "sobredeterminação"? Claro que não. E numa perspetiva que elida o desequilíbrio de forças, as injustiças, as crueldades? Claro que não. Sempre fiz uma antropologia engajada e continuo a crer que os mais fracos têm menos voz. Mas as fraquezas identificadas nas vidas concretas, devidas a variáveis bem mais complexas do que as da dicotomia, são ainda mais difíceis de identificar, e pedem mais voz, do que o grande chapéu-de-chuva da desigualdade local.
Ir para um terreno como Israel/Palestina reproduzir simplesmente as tomadas de posição globalizantes sobre quem tem razão seria pobre, e do ponto de vista de um trabalho antropológico seria mesmo patético. Ir mais fundo do que o discurso dominante significa sair dos limites da sua enunciação. Significa assumir uma postura realista, dizendo: aqui vive gente; e esta gente é mais rica do que as etiquetas e tem mais vida do que o conflito e a narrativa global a que deu azo. E significa pegar nos problemas das "minas" pelos cornos, como objeto de reflexão ele mesmo. Não, não me perguntem "de que lado estou". Perguntem-me o que penso sobre a invasão do Líbano, o caso da flotilha, ou um ataque terrorista a um autocarro e eu direi o que acho - direi como sou contra o terror dos estados e o terror dos movimentos de libertação. Como direi que sou a favor de soluções que garantam a autodeterminação e a dignidade a israelitas e palestinianos, como sou a favor da laicidade e da democracia, como sou a favor de mais igualdade económica e social. Como direi que sei haver pessoas, de "um lado" e "do outro" que pensam o mesmo, e todas elas sabendo que, se por um lado o desequilíbrio de forças é muito grande, por outro as ameaças percecionadas por cada "lado" são de natureza diferente.
Que seja necessário este relambório, que eu sinta necessidade de escrever este chorrilho de pensamentos mais ou menos caóticos, é em si mesmo um sinal da especificidade, da densidade, da intensidade daquele terreno - sobretudo para quem lá vive, mas também para o resto do mundo que vive israel/palestina como um dos principais problemas não-resolvidos e um recurso narrativo e de posicionamentos "para lá" do próprio lugar. Contornar as minas, as armadilhas da linguagem, da acusação, da manipulação, da sedução, do pré-juízo, começa e acaba com a busca de outras linguagens, de outros termos em que as questões sejam colocadas, num difícil equilíbrio entre isto e o reconhecimento da referida sobredeterminação e a confrontação com a visibilidade dos dramas e injustiças. Mas quem disse que a ciência era fácil, sobretudo se humana, marcada pelo pensamento crítico e aberta às vozes múltiplas e concretas de pessoas concretas?
Um "chorrilho de pensamentos" que, no entanto, abre muito o apetite pelos posts futuros, sobretudo para quem está farto do pobre tratamento "jornalístico" ou "político" do tema!
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