Sem autocarros ou elétrico por causa do shabat, sigo a pé pela Herzl. De vez em quando passa um carro, mas em geral só se vê pessoas caminhando. Esta é a nova Jerusalém, a ocidental, com a ponte do Calatrava adornando o novo sistema de elétricos rápidos. É quase irónico que esta modernidade, certamente feita como contraposição simbólica ao "oriente" do outro lado (veja-se este artigo sobre o estudo da Ir Amin sobre Jerusalém este), acabe por ser ocupada cada vez mais pela população religiosa, parte dela anti-sionista - não pelas razões usuais do anti-sionismo, mas porque para esse segmento Israel como entidade política é um absurdo antes da chegada do Messias.
Os ultra-religiosos, sobretudo os mais visíveis haredim, são um desafio e um exemplo antropológicos. Estamos habituados a associar o extremismo religioso a formas específicas de puritanismo e controlo do corpo e somos surpreendidos neste caso. Esse controlo existe, claro, mas aplica-se a coisas diferentes das da experiência cristã ou outras - está lá a segregação sexual, está lá o controlo das fronteiras do puro e do impuro entre o grupo a que se pertence e os outros. Mas há formas de expressão que surpreendem quem pense que a gramática destas coisas é sempre a mesma: na dança, na música, na loquacidade, na ocupação do espaço público, não estamos perante nem o puritanismo protestante nem a atitude de freira. No caminho ao longo da Herzl, um jovem haredi com brinco na orelha cruzou-se comigo e cinco minutos depois foi abalrroado por outro que corria desenfreado, segurando o chapéu com uma mão, só para atacar o outro pelas costas na brincadeira. Mas esta cidade está "tomada" e cada vez mais, por uma população que tem mais filhos, que recusa enviá-los para a tropa, que beneficia do estado social e que procura controlar as regras gerais de convivência. E a luta está declarada. Veja-se, por exemplo, esta disputa entre seculares e religiosos em torno de um espaço devoluto e sobre o que fazer com ele.
Avanço pela Jaffa Road, também ela vazia e mando bugiar um taxista que quer dar-me boleia - mando bugiar porque ele, depois de toda uma sedução, perguntando de onde eu era, dizendo "bom dia" em perfeito português, etc, arranca sem se despedir e com cara de pau quando lhe digo que não quero táxi e que "ani lo tayar" (não sou turista). Na Ha-Rav Kook entro num van, um sherut, o serviço de táxis coletivos, assegurados aos sábados por condutores sobretudo árabes. Rapidamente enche com gente querendo ir para Tel-Aviv. Fico sentado entre um jovem israelita com dreadlocks, manipulando o seu i-pod, e um jovem negro que não falava hebraico nem inglês. O sherut arranca e num sinal vermelho é parado por um homem negro, falando muito pouco hebraico, que começa uma conversa complicada com o condutor, que só lhe pergunta "o que é que queres, o que é que queres?". Aparentemente o outro queria falar com o que estava sentado ao meu lado, que ainda se mexe para sair do táxi. Mas o condutor, irritado com a situação, e vendo o sinal a mudar para verde, grita um impropério e arranca. Fico pensando como serão as atitudes dos árabes para com o crescente número de imigrantes africanos em Israel...
Chego a Tel-Aviv a uma estação de autocarros com todos os estereótipos do terceiro mundo. Uma quantidade enorme de vans, gente de todas as cores e roupas circulando, gesticulando, correndo, músicas de todos os tipos, lojinhas e lojecas, praças inteiras cheias de africanos conversando em grupos, comerciando, divertindo-se, esperando, circulando. Aparentemente trata-se de uma vasta população de imigrantes, não necessariamente nem sobretudo judeus etíopes, mas sim imigrantes económicos e refugiados, cujo mau tratamento tem sido denunciado por alguns jornais - ou não fosse o ministro responsável de um partido da direita ultra-religiosa, acusando os imigrantes do mesmo tipo de contaminação e impureza pela qual os seus antepassados foram acusados...
Pego mais um sherut, o número 5, desta feita conduzido por um russo, até ao centro Dizengof e encontro-me com o meu amigo Or. Vou até sua casa, e do seu companheiro, o Shai, onde me recebem para um belo almoço de peixe, kinoa e salada. A comida e as pequenas interações do quotidiano urbano talvez sejam os melhores indicadores da sensação que se tem de um encontro e mistura entre "a europa" e "o médio oriante". Na comida nota-se a influência da europa central - nos laticínios, nas sobremesas, por exemplo - aliada à influência "oriental" - os humus, as pitas, por exemplo - e tudo isto se encontra e potencia numa cultura das saladas e dos frescos, que é extremamente revigorante e saudável. No pequeno quotidiano, e só neste dia, notei duas "linhagens". Por um lado, toda a gente respeita os sinais de trânsito e as passadeiras, por outro ninguém faz fila para nada; por um lado os vans parecem funcionar como numa cidade africana, mas por outro percebe-se que têm rotas definidas, que estão oficializados. Dentro deles, as pessoas sentam-se primeiro, depois dão o dinheiro a outro passageiro, que o passa a outro até chegar ao condutor e vice-versa para o percurso do troco.
O meu amigo está doente, com febre, e deixo-os descansando e vou para a praia, dia off. Praia urbana, claro (o Rio vem à mente) e, sendo sábado, apinhada. Procuro a praia gay, lá para o fundo, tal como a praia segregada, onde em certos dias só podem ir homens e noutros mulheres, oferecendo assim um serviço aos mais religiosos mas, curiosamente, também a mulheres que não queiram ser incomodadas. Por azar não leio os sinais bem - os que dizem "não são permitidos animais" - e caio na única praia que permite cães, pelo que tive um dia... canino. Ninguém controlava os cães ou pedia desculpa pelo que faziam; mas também ninguém pedia desculpa pelo spray solar que voava até aos outros, pela música a altos berros, pelo cheiro do haxe, ou pelo que fosse. Felizmente - e não estava exatamente na praia gay, até porque não era tão evidente como isso - também os casais do mesmo sexo não pediam "desculpa" por estarem de mãos dadas.
No regresso deambulei por uma cidade de calções e havaianas, bicicletas e scooters, sem a paisagem humana religiosa - o inverso de Jerusalém. Acabo por voltar a Jerusalém. O Or tinha ido ao médico e precisava mesmo de descansar, pelo que cancelámos planos de divertimento noturno. Tel-Aviv e Jerusalém são tão perto que facilmente tomei o autocarro (o shabat acabara ao pôr-do-sol, momento lindo, aliás, com n estabelecimentos reabrindo, e para a noite, como se fossem flores noturnas desabrochando), desta vez noutra estação, na zona super-moderna da cidade. Ao meu lado uma mulher desenhava no i-pad, tocava Gotye em versão dançável, seguindo de cançoes schmaltzy hebraicas (muitas rádios misturam tudo, o que é delicioso) e as luzes da autoestrada adormeceram-me na subida para Jerusalém.
Hoje - escrevo no dia seguinte à ida a Tel-Aviv- é Dia de Jerusalém e as coisas já aquecem. Chega de intervalo Tel-Aviviano (mesmo que haja, e há, muito que explorar em termos de pistas de pesquisa - o meu amigo ficou de me apresentar a um outro que trabalha numa clínica de DST com imigrantes). Há que sair à rua e ver.
Os ultra-religiosos, sobretudo os mais visíveis haredim, são um desafio e um exemplo antropológicos. Estamos habituados a associar o extremismo religioso a formas específicas de puritanismo e controlo do corpo e somos surpreendidos neste caso. Esse controlo existe, claro, mas aplica-se a coisas diferentes das da experiência cristã ou outras - está lá a segregação sexual, está lá o controlo das fronteiras do puro e do impuro entre o grupo a que se pertence e os outros. Mas há formas de expressão que surpreendem quem pense que a gramática destas coisas é sempre a mesma: na dança, na música, na loquacidade, na ocupação do espaço público, não estamos perante nem o puritanismo protestante nem a atitude de freira. No caminho ao longo da Herzl, um jovem haredi com brinco na orelha cruzou-se comigo e cinco minutos depois foi abalrroado por outro que corria desenfreado, segurando o chapéu com uma mão, só para atacar o outro pelas costas na brincadeira. Mas esta cidade está "tomada" e cada vez mais, por uma população que tem mais filhos, que recusa enviá-los para a tropa, que beneficia do estado social e que procura controlar as regras gerais de convivência. E a luta está declarada. Veja-se, por exemplo, esta disputa entre seculares e religiosos em torno de um espaço devoluto e sobre o que fazer com ele.
Avanço pela Jaffa Road, também ela vazia e mando bugiar um taxista que quer dar-me boleia - mando bugiar porque ele, depois de toda uma sedução, perguntando de onde eu era, dizendo "bom dia" em perfeito português, etc, arranca sem se despedir e com cara de pau quando lhe digo que não quero táxi e que "ani lo tayar" (não sou turista). Na Ha-Rav Kook entro num van, um sherut, o serviço de táxis coletivos, assegurados aos sábados por condutores sobretudo árabes. Rapidamente enche com gente querendo ir para Tel-Aviv. Fico sentado entre um jovem israelita com dreadlocks, manipulando o seu i-pod, e um jovem negro que não falava hebraico nem inglês. O sherut arranca e num sinal vermelho é parado por um homem negro, falando muito pouco hebraico, que começa uma conversa complicada com o condutor, que só lhe pergunta "o que é que queres, o que é que queres?". Aparentemente o outro queria falar com o que estava sentado ao meu lado, que ainda se mexe para sair do táxi. Mas o condutor, irritado com a situação, e vendo o sinal a mudar para verde, grita um impropério e arranca. Fico pensando como serão as atitudes dos árabes para com o crescente número de imigrantes africanos em Israel...
Chego a Tel-Aviv a uma estação de autocarros com todos os estereótipos do terceiro mundo. Uma quantidade enorme de vans, gente de todas as cores e roupas circulando, gesticulando, correndo, músicas de todos os tipos, lojinhas e lojecas, praças inteiras cheias de africanos conversando em grupos, comerciando, divertindo-se, esperando, circulando. Aparentemente trata-se de uma vasta população de imigrantes, não necessariamente nem sobretudo judeus etíopes, mas sim imigrantes económicos e refugiados, cujo mau tratamento tem sido denunciado por alguns jornais - ou não fosse o ministro responsável de um partido da direita ultra-religiosa, acusando os imigrantes do mesmo tipo de contaminação e impureza pela qual os seus antepassados foram acusados...
Pego mais um sherut, o número 5, desta feita conduzido por um russo, até ao centro Dizengof e encontro-me com o meu amigo Or. Vou até sua casa, e do seu companheiro, o Shai, onde me recebem para um belo almoço de peixe, kinoa e salada. A comida e as pequenas interações do quotidiano urbano talvez sejam os melhores indicadores da sensação que se tem de um encontro e mistura entre "a europa" e "o médio oriante". Na comida nota-se a influência da europa central - nos laticínios, nas sobremesas, por exemplo - aliada à influência "oriental" - os humus, as pitas, por exemplo - e tudo isto se encontra e potencia numa cultura das saladas e dos frescos, que é extremamente revigorante e saudável. No pequeno quotidiano, e só neste dia, notei duas "linhagens". Por um lado, toda a gente respeita os sinais de trânsito e as passadeiras, por outro ninguém faz fila para nada; por um lado os vans parecem funcionar como numa cidade africana, mas por outro percebe-se que têm rotas definidas, que estão oficializados. Dentro deles, as pessoas sentam-se primeiro, depois dão o dinheiro a outro passageiro, que o passa a outro até chegar ao condutor e vice-versa para o percurso do troco.
O meu amigo está doente, com febre, e deixo-os descansando e vou para a praia, dia off. Praia urbana, claro (o Rio vem à mente) e, sendo sábado, apinhada. Procuro a praia gay, lá para o fundo, tal como a praia segregada, onde em certos dias só podem ir homens e noutros mulheres, oferecendo assim um serviço aos mais religiosos mas, curiosamente, também a mulheres que não queiram ser incomodadas. Por azar não leio os sinais bem - os que dizem "não são permitidos animais" - e caio na única praia que permite cães, pelo que tive um dia... canino. Ninguém controlava os cães ou pedia desculpa pelo que faziam; mas também ninguém pedia desculpa pelo spray solar que voava até aos outros, pela música a altos berros, pelo cheiro do haxe, ou pelo que fosse. Felizmente - e não estava exatamente na praia gay, até porque não era tão evidente como isso - também os casais do mesmo sexo não pediam "desculpa" por estarem de mãos dadas.
No regresso deambulei por uma cidade de calções e havaianas, bicicletas e scooters, sem a paisagem humana religiosa - o inverso de Jerusalém. Acabo por voltar a Jerusalém. O Or tinha ido ao médico e precisava mesmo de descansar, pelo que cancelámos planos de divertimento noturno. Tel-Aviv e Jerusalém são tão perto que facilmente tomei o autocarro (o shabat acabara ao pôr-do-sol, momento lindo, aliás, com n estabelecimentos reabrindo, e para a noite, como se fossem flores noturnas desabrochando), desta vez noutra estação, na zona super-moderna da cidade. Ao meu lado uma mulher desenhava no i-pad, tocava Gotye em versão dançável, seguindo de cançoes schmaltzy hebraicas (muitas rádios misturam tudo, o que é delicioso) e as luzes da autoestrada adormeceram-me na subida para Jerusalém.
Hoje - escrevo no dia seguinte à ida a Tel-Aviv- é Dia de Jerusalém e as coisas já aquecem. Chega de intervalo Tel-Aviviano (mesmo que haja, e há, muito que explorar em termos de pistas de pesquisa - o meu amigo ficou de me apresentar a um outro que trabalha numa clínica de DST com imigrantes). Há que sair à rua e ver.
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