Em qualquer sociedade ou situação social funcionamos em
redes e estas têm e estabelecem fronteiras. Aqui, nesta situação de professor
visitante, na universidade, no bairro em que vivo, com as pessoas que vou
conhecendo, torna-se evidente a dificuldade em conhecer, por exemplo, pessoas
árabes. Elas estão aí: na minha aula, nos corredores da universidade, nas ruas,
nas lojas. Mas elas não chegam a mim e eu não chego a elas “naturalmente”, em
bola de neve, só através de um esforço propositado – procurando-as aqui, ou indo
a Jerusalém Leste, ou indo aos territórios ocupados. Não é muito diferente da
distância de classes, ou étnica, em Portugal. Mas é exagerado, dada a situação d’ O Conflito. E diz muito sobre a
situação local – sobre a sua semelhança com qualquer outro contexto, mas sobre
a especificidade, a intensidade acrescida
que torna este contexto (mais) rico. Este simples (?) facto, o da dificuldade
em encontrar certo tipo de pessoas ou a possibilidade de ficar numa bolha,
faz-me pensar nas contradições fundamentais que estruturam a vida social aqui.
Qualquer sociedade é feita de contradições. Dinâmicas, todas
elas, entrópicas algumas. Não há a mínima dúvida de que, seja de um ponto de
vista das representações locais, seja do ponto de vista das perceções externas,
a contradição fundamental aqui é o Conflito. Ele estrutura a política externa,
as políticas internas de Israel e Palestina, e as vidas das pessoas. Se em todo
o lado há fantasmas, a verdade é que em muitas sociedades (veja-se Portugal) os
fantasmas ficam no armário ou na cave. Aqui eles assombram as casas, por assim
dizer. Não há quem, israelense ou palestiniano, não tenha fantasmas vivos –
vindos do passado mais distante (da shoah, dos pogroms, da nakba) ou do passado
das biografias concretas (familiares ou amigos mortos nas guerras, nos
atentados, nas intervenções militares).
O problema fundamental é como um estado, este estado, foi
construído com base nos ideais modernos do estado-nação, para refúgio de um
povo perseguido – que de qualquer modo oscilava entre uma autodefiniçãoo étnica
abrangente ou estritamente confessional – só que num território onde, desde o exílio
judeu, entretanto se estabelecera um povo tornado autóctone. E o facto de tal
ter acontecido no período colonial e da “passagem de testemunho” de uma potência
imperial pré-moderna (os Otomanos) para uma potência colonial propriamente dita
moderna (os Ingleses). A mistura e contradição entre novo estado-nação e
situação “de tipo colonial” (para distinguir dos colonialismos propriamente
ditos, perpetrados por estados-nação pré-existentes à colonização) está na raiz
da especificidade do Conflito.
Mas dentro da sociedade israelense vamos encontrar outras
contradições, internas (se bem que se articulem com a maior). Há-as de natureza
por assim dizer étnica (e fruto quer do sionismo, quer da formação do estado,
quer das sucessivas migrações quer, sobretudo, de uma crescente etnicização,
típica aliás em todo o mundo). A principal talvez seja a que opõe ashkenazis a
sefarditas, as pessoas originárias do centro e leste da Europa e as originárias
do Mediterrâneo e do Oriente. A expressão Sefardita engana um pouco: referindo
especificamente os judeus oriundos da Península Ibérica, que depois se
estabeleceram no Norte de África, ela recobre, algo erroneamente, um grupo mais
específico, os Mizrahi, judeus do Oriente propriamente dito, dos países árabes,
em suma judeus de cultura árabe e com uma experiência histórica não-Europeia.
Maioritários demograficamente até há pouco, foram sempre minoritários na
influência no Estado, construído a partir de ideias e conceitos tipicamente
europeus pelos Ashkenazi. A discriminação e diferença ao nível das
oportunidades entre as duas estirpes têm sido flagrantes.
A esta divisória acresce o efeito da chegada de centenas de
milhares de russos no período subsequente à Perestroika. O projeto tipicamente
nacionalista, de construção de um estado-nação moderno, laico, e com utopia de
progresso, trazido pelos Ashkenazi, foi temperado e, depois, posto em causa,
quer pela diversa experiência cultural dos Mizrahi, quer pelo conservadorismo de
que os russos são acusados pelos setores mais liberais... As diferentes origens
nacionais do judeus de Israel, e os diferentes períodos da sua chegada, dão
conta de alterações quer na política do Conflito, quer na política interna do
modelo de organização da sociedade, quer nas “guerras culturais” da sociedade
–o crescimento da influência conservadora religiosa tem maior apoio entre os
“orientais” e as posturas de direita, nomeadamente na política relativa ao
conflito, devem algum do seu crescimento à influência russa na política
nacional.
A isto poder-se-ia acrescentar pelo menos duas outras
contradições. A mais fundamental é a que diz respeito à incorporação – e sua
falha – dos árabes com cidadania israelita, que, sejam muçulmanos ou cristãos
ou mesmo druzos, vivem naturalmente numa ambiguidade entre a sua pertença
política e a sua lealdade cultural, sobretudo face aos seus parentes nos
territórios. A outra seria a que foi introduzida pela vinda dos judeus etíopes
e pela introdução de uma variável “racial”, pela visibilidade fenotípica, e de
uma diferença cultural mais radical do que a constituída pelas diferentes
origens regionais dos judeus chegados antes. É óbvia a subalternidade deste na
sociedade, como o é a dos árabes, sobretudo a dos palestinianos que aqui
trabalham.
Uma outra ordem de contradições decorre da mistura entre a
natureza do estado e as dinâmicas identitárias das sociedades contemporâneas. A
divisão entre setores mais conservadores e setores mais liberais dá-se, como no
resto do ocidente, entre, por um lado, visões mais liberais da economia e
visões mais social-democratas e, por outro, entre visões mais conservadoras nos
costumes e outras mais liberais. No caso de Israel estas tensões estão
presentes desde o início, na oposição entre um sionismo socialista e um
sionismo religioso ou tradicionalista. Elas agravam-se com a oposição entre
secularismo e religião e refletem-se não só em diferentes perspetivas sobre o
Conflito, como em diferentes perspetivas sobre direitos cívicos e liberdades
individuais. No campo do género, a segregação por sexo entre as camadas mais
religiosas, que tentam impor a sua visão à organização da vida social, choca
com o igualitarismo de género entre as camadas seculares; o mesmo se pode dizer
em relação às questões de sexualidade, nomeadamente LGBT. Como muitas outras
sociedades desenvolvidas, a imigração e o refúgio constituem também um
“problema social”, como se tem notado nas reações negativas pelos setores mais
conservadores à chegada de imigrantes do sul do Sudão ou da Eritreia –
diferenciados quer da imigração filipina para apoio domiciliário dos idosos, ou
de diferentes vagas de aliyah por
parte de diferentes populações, como os judeus etíopes.
Todos estes níveis de contradição atravessam as divisões de
classe ou estatuto socioeconómico ou diferentes tipos de capital simbólico, e
tendem também a organizar-se em aglomerações geograficamente distintas, resultantes
em ambientes sociais bem diversos – a “bolha” secular e cosmopolita de
Tel-Aviv, a religiosidade crescente de Jerusalém, o caráter mais hibridizado de
judeus e árabes de Haifa, os colonatos nos territórios ocupados ou os próprios
territórios ocupados, onde a frágil e pequena jurisdição da Autoridade
Palestiniana ombreia com a jurisdição de exceção, típica de uma ocupação
militar, do resto do que poderá vir a ser o estado palestiniano.
Por fim, Israel é ainda o lugar de três outros fenómenos:
lugar de peregrinações e migrações várias baseadas quer na visitação por parte
de judeus da Diáspora, quer por parte de fiéis de outras religiões,
especialmente cristãos, que definem o lugar como “Terra Santa”; lugar
imaginário de uma crescente diferenciação entre ser judeu da diáspora ou judeu
de Israel; e lugar icónico das próprias contradições da modernidade, lugar em
relação ao qual (desde a questão do antissemitismo, até à questão da
solidariedade com a Palestina, passando pelas posturas face ao(s) sionismo(s))
todo o mundo tem uma opinião e todo o mundo usa como instrumento de
posicionamento ideológico.
É óbvio que Israel é uma especificidade. Não é nem um
estado-nação do tipo dos que se formaram na Europa no século XIX, nem uma
situação colonial propriamente dita, nem sequer uma autonomização de raiz
europeia num contexto colonial, como o foi a África do Sul. É outra coisa,
única. Assim como a Palestina constitui uma situação única. A situação em que
vivem os árabes em Israel/Palestina é insustentável (a não ser que se aceite
cinicamente um status quo como o atual, em que as pessoas vivem nos
interstícios da anormalidade ou mesmo às cavalitas dela) e os israelenses
sabem-no também, posicionando-se, aliás, de formas muito diferenciadas face à
questão. Todas as contradições dinâmicas e/ou entrópicas da sociedade
israelense dependem, de alguma forma, da resolução do Conflito. Mas, num plano
que não pode deixar de ser moral, quem precisa mais urgentemente de uma solução
são os próprios palestinianos. E que soluções surgem no cenário? Num extremo, e
de um lado e do outro, os fanáticos que pensam as coisas em termos de
legitimidade e autenticidade e que, por isso, só podem pensar na expulsão e no
extermínio do Outro. No outro extremo, a minoria racionalista e liberal,
sobretudo intelectual, que sonha com a utopia de um estado único, laico, de uma
pessoa, um voto. No meio, a solução que está na mesa, a dos dois estados, com
cidadanias diferenciadas mas, naturalmente, continuando e aprofundando uma
economia integrada. Esta solução, que é a dos Acordos, está a ser
sistematicamente posta em causa ou impedida, quer por razões de política
interna em ambos os lados, quer por causa da questão dos colonatos judeus nos
Territórios, quer pela do direito de regresso dos exilados e refugiados
palestinianos, quer ainda pela geopolítica regional. Faltando a verdadeira
autonomia à sociedade palestiniana para que se possa também aí identificar as
suas contradições dinâmicas ou entrópicas (de classe, de religião, de
experiência diaspórica, de género, de ideologia) certo é que o Conflito, mais
do que um fantasma, é um monstro presente, e só a sua resolução poderá levar a
que as outras contradições se vão resolvendo “apenas” com os fantasmas que
todos temos. Israel e Palestina são a
epítome, empolada e exagerada até ao nível do trágico, das contradições da
modernidade e, agora, da modernidade tardia. Por isso, sendo a sociedade deste
território “igual às outras”, ela é “mais igual do que as outras”. É aqui que
tudo pode ser pensado.
Disclaimer para lá (ou não...) do realismo
antropológico: Eu gosto de Israel e da sua democracia. Eu defendo a existência
do estado de Israel. Eu gostaria de um estado de Israel mais laico e de uma
política oficial israelense não dominada pelo sionismo de direita. Eu estou
certo de que gostarei da Palestina, sou solidário com o sofrimento palestiniano
e reconheço que, no momento em que escrevo, a situação palestiniana não é
simétrica da israelita, mas pior. Eu defendo o realismo histórico e
sociológico: as pessoas existem aqui, são daqui, aqui ficarão. Isso aplica-se a
Israel e deve aplicar-se à Palestina e ao direito que os dois povos têm a
Estados viáveis e seguros.
Nota: prefiro a norma brasileira de “israelense” para
referir o que é de Israel, e “israelita” como sinónimo de judeu. O uso de “israelita”
para ambas as coisas no português de Portugal parece-me erróneo.
O "Conflito" atenua-se face à ameaça externa constante (atualmente o Irão)? esta situação de "fortificação cercada" por inimigos sente-se no dia-a-dia da vida dos israelenses?
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