quinta-feira, 24 de maio de 2012

Fantasmas, monstros, e outras criaturas


Em qualquer sociedade ou situação social funcionamos em redes e estas têm e estabelecem fronteiras. Aqui, nesta situação de professor visitante, na universidade, no bairro em que vivo, com as pessoas que vou conhecendo, torna-se evidente a dificuldade em conhecer, por exemplo, pessoas árabes. Elas estão aí: na minha aula, nos corredores da universidade, nas ruas, nas lojas. Mas elas não chegam a mim e eu não chego a elas “naturalmente”, em bola de neve, só através de um esforço propositado – procurando-as aqui, ou indo a Jerusalém Leste, ou indo aos territórios ocupados. Não é muito diferente da distância de classes, ou étnica, em Portugal. Mas é exagerado, dada a situação d’ O Conflito. E diz muito sobre a situação local – sobre a sua semelhança com qualquer outro contexto, mas sobre a especificidade, a intensidade acrescida que torna este contexto (mais) rico. Este simples (?) facto, o da dificuldade em encontrar certo tipo de pessoas ou a possibilidade de ficar numa bolha, faz-me pensar nas contradições fundamentais que estruturam a vida social aqui.

Qualquer sociedade é feita de contradições. Dinâmicas, todas elas, entrópicas algumas. Não há a mínima dúvida de que, seja de um ponto de vista das representações locais, seja do ponto de vista das perceções externas, a contradição fundamental aqui é o Conflito. Ele estrutura a política externa, as políticas internas de Israel e Palestina, e as vidas das pessoas. Se em todo o lado há fantasmas, a verdade é que em muitas sociedades (veja-se Portugal) os fantasmas ficam no armário ou na cave. Aqui eles assombram as casas, por assim dizer. Não há quem, israelense ou palestiniano, não tenha fantasmas vivos – vindos do passado mais distante (da shoah, dos pogroms, da nakba) ou do passado das biografias concretas (familiares ou amigos mortos nas guerras, nos atentados, nas intervenções militares).

O problema fundamental é como um estado, este estado, foi construído com base nos ideais modernos do estado-nação, para refúgio de um povo perseguido – que de qualquer modo oscilava entre uma autodefiniçãoo étnica abrangente ou estritamente confessional –  só que num território onde, desde o exílio judeu, entretanto se estabelecera um povo tornado autóctone. E o facto de tal ter acontecido no período colonial e da “passagem de testemunho” de uma potência imperial pré-moderna (os Otomanos) para uma potência colonial propriamente dita moderna (os Ingleses). A mistura e contradição entre novo estado-nação e situação “de tipo colonial” (para distinguir dos colonialismos propriamente ditos, perpetrados por estados-nação pré-existentes à colonização) está na raiz da especificidade do Conflito.

Mas dentro da sociedade israelense vamos encontrar outras contradições, internas (se bem que se articulem com a maior). Há-as de natureza por assim dizer étnica (e fruto quer do sionismo, quer da formação do estado, quer das sucessivas migrações quer, sobretudo, de uma crescente etnicização, típica aliás em todo o mundo). A principal talvez seja a que opõe ashkenazis a sefarditas, as pessoas originárias do centro e leste da Europa e as originárias do Mediterrâneo e do Oriente. A expressão Sefardita engana um pouco: referindo especificamente os judeus oriundos da Península Ibérica, que depois se estabeleceram no Norte de África, ela recobre, algo erroneamente, um grupo mais específico, os Mizrahi, judeus do Oriente propriamente dito, dos países árabes, em suma judeus de cultura árabe e com uma experiência histórica não-Europeia. Maioritários demograficamente até há pouco, foram sempre minoritários na influência no Estado, construído a partir de ideias e conceitos tipicamente europeus pelos Ashkenazi. A discriminação e diferença ao nível das oportunidades entre as duas estirpes têm sido flagrantes.

A esta divisória acresce o efeito da chegada de centenas de milhares de russos no período subsequente à Perestroika. O projeto tipicamente nacionalista, de construção de um estado-nação moderno, laico, e com utopia de progresso, trazido pelos Ashkenazi, foi temperado e, depois, posto em causa, quer pela diversa experiência cultural dos Mizrahi, quer pelo conservadorismo de que os russos são acusados pelos setores mais liberais... As diferentes origens nacionais do judeus de Israel, e os diferentes períodos da sua chegada, dão conta de alterações quer na política do Conflito, quer na política interna do modelo de organização da sociedade, quer nas “guerras culturais” da sociedade –o crescimento da influência conservadora religiosa tem maior apoio entre os “orientais” e as posturas de direita, nomeadamente na política relativa ao conflito, devem algum do seu crescimento à influência russa na política nacional.

A isto poder-se-ia acrescentar pelo menos duas outras contradições. A mais fundamental é a que diz respeito à incorporação – e sua falha – dos árabes com cidadania israelita, que, sejam muçulmanos ou cristãos ou mesmo druzos, vivem naturalmente numa ambiguidade entre a sua pertença política e a sua lealdade cultural, sobretudo face aos seus parentes nos territórios. A outra seria a que foi introduzida pela vinda dos judeus etíopes e pela introdução de uma variável “racial”, pela visibilidade fenotípica, e de uma diferença cultural mais radical do que a constituída pelas diferentes origens regionais dos judeus chegados antes. É óbvia a subalternidade deste na sociedade, como o é a dos árabes, sobretudo a dos palestinianos que aqui trabalham.

Uma outra ordem de contradições decorre da mistura entre a natureza do estado e as dinâmicas identitárias das sociedades contemporâneas. A divisão entre setores mais conservadores e setores mais liberais dá-se, como no resto do ocidente, entre, por um lado, visões mais liberais da economia e visões mais social-democratas e, por outro, entre visões mais conservadoras nos costumes e outras mais liberais. No caso de Israel estas tensões estão presentes desde o início, na oposição entre um sionismo socialista e um sionismo religioso ou tradicionalista. Elas agravam-se com a oposição entre secularismo e religião e refletem-se não só em diferentes perspetivas sobre o Conflito, como em diferentes perspetivas sobre direitos cívicos e liberdades individuais. No campo do género, a segregação por sexo entre as camadas mais religiosas, que tentam impor a sua visão à organização da vida social, choca com o igualitarismo de género entre as camadas seculares; o mesmo se pode dizer em relação às questões de sexualidade, nomeadamente LGBT. Como muitas outras sociedades desenvolvidas, a imigração e o refúgio constituem também um “problema social”, como se tem notado nas reações negativas pelos setores mais conservadores à chegada de imigrantes do sul do Sudão ou da Eritreia – diferenciados quer da imigração filipina para apoio domiciliário dos idosos, ou de diferentes vagas de aliyah por parte de diferentes populações, como os judeus etíopes.

Todos estes níveis de contradição atravessam as divisões de classe ou estatuto socioeconómico ou diferentes tipos de capital simbólico, e tendem também a organizar-se em aglomerações geograficamente distintas, resultantes em ambientes sociais bem diversos – a “bolha” secular e cosmopolita de Tel-Aviv, a religiosidade crescente de Jerusalém, o caráter mais hibridizado de judeus e árabes de Haifa, os colonatos nos territórios ocupados ou os próprios territórios ocupados, onde a frágil e pequena jurisdição da Autoridade Palestiniana ombreia com a jurisdição de exceção, típica de uma ocupação militar, do resto do que poderá vir a ser o estado palestiniano.

Por fim, Israel é ainda o lugar de três outros fenómenos: lugar de peregrinações e migrações várias baseadas quer na visitação por parte de judeus da Diáspora, quer por parte de fiéis de outras religiões, especialmente cristãos, que definem o lugar como “Terra Santa”; lugar imaginário de uma crescente diferenciação entre ser judeu da diáspora ou judeu de Israel; e lugar icónico das próprias contradições da modernidade, lugar em relação ao qual (desde a questão do antissemitismo, até à questão da solidariedade com a Palestina, passando pelas posturas face ao(s) sionismo(s)) todo o mundo tem uma opinião e todo o mundo usa como instrumento de posicionamento ideológico.

É óbvio que Israel é uma especificidade. Não é nem um estado-nação do tipo dos que se formaram na Europa no século XIX, nem uma situação colonial propriamente dita, nem sequer uma autonomização de raiz europeia num contexto colonial, como o foi a África do Sul. É outra coisa, única. Assim como a Palestina constitui uma situação única. A situação em que vivem os árabes em Israel/Palestina é insustentável (a não ser que se aceite cinicamente um status quo como o atual, em que as pessoas vivem nos interstícios da anormalidade ou mesmo às cavalitas dela) e os israelenses sabem-no também, posicionando-se, aliás, de formas muito diferenciadas face à questão. Todas as contradições dinâmicas e/ou entrópicas da sociedade israelense dependem, de alguma forma, da resolução do Conflito. Mas, num plano que não pode deixar de ser moral, quem precisa mais urgentemente de uma solução são os próprios palestinianos. E que soluções surgem no cenário? Num extremo, e de um lado e do outro, os fanáticos que pensam as coisas em termos de legitimidade e autenticidade e que, por isso, só podem pensar na expulsão e no extermínio do Outro. No outro extremo, a minoria racionalista e liberal, sobretudo intelectual, que sonha com a utopia de um estado único, laico, de uma pessoa, um voto. No meio, a solução que está na mesa, a dos dois estados, com cidadanias diferenciadas mas, naturalmente, continuando e aprofundando uma economia integrada. Esta solução, que é a dos Acordos, está a ser sistematicamente posta em causa ou impedida, quer por razões de política interna em ambos os lados, quer por causa da questão dos colonatos judeus nos Territórios, quer pela do direito de regresso dos exilados e refugiados palestinianos, quer ainda pela geopolítica regional. Faltando a verdadeira autonomia à sociedade palestiniana para que se possa também aí identificar as suas contradições dinâmicas ou entrópicas (de classe, de religião, de experiência diaspórica, de género, de ideologia) certo é que o Conflito, mais do que um fantasma, é um monstro presente, e só a sua resolução poderá levar a que as outras contradições se vão resolvendo “apenas” com os fantasmas que todos temos.  Israel e Palestina são a epítome, empolada e exagerada até ao nível do trágico, das contradições da modernidade e, agora, da modernidade tardia. Por isso, sendo a sociedade deste território “igual às outras”, ela é “mais igual do que as outras”. É aqui que tudo pode ser pensado.

Disclaimer para lá (ou não...) do realismo antropológico: Eu gosto de Israel e da sua democracia. Eu defendo a existência do estado de Israel. Eu gostaria de um estado de Israel mais laico e de uma política oficial israelense não dominada pelo sionismo de direita. Eu estou certo de que gostarei da Palestina, sou solidário com o sofrimento palestiniano e reconheço que, no momento em que escrevo, a situação palestiniana não é simétrica da israelita, mas pior. Eu defendo o realismo histórico e sociológico: as pessoas existem aqui, são daqui, aqui ficarão. Isso aplica-se a Israel e deve aplicar-se à Palestina e ao direito que os dois povos têm a Estados viáveis e seguros.

Nota: prefiro a norma brasileira de “israelense” para referir o que é de Israel, e “israelita” como sinónimo de judeu. O uso de “israelita” para ambas as coisas no português de Portugal parece-me erróneo.


1 comentário:

  1. O "Conflito" atenua-se face à ameaça externa constante (atualmente o Irão)? esta situação de "fortificação cercada" por inimigos sente-se no dia-a-dia da vida dos israelenses?

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