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Rehov Karmon (Bet Hakerem) |
Esta é a minha rua. Estava à espera que chegasse C, a colega que me levou no tour das burocracias a tratar. No r/c mora uma senhora que se passeia lentamente pelo seu quintal observando as folhas e os gatos. No meio do logradouro do prédio está uma nespereira. E à frente do prédio, muitas vezes as cores da vegetação, a própria vegetação, fazem lembrar o interior do Algarve. Só uma espécie de bege, cor de terra clara, que predomina nos edifícios, faz pensar mais no Médio Oriente do que no... extremo ocidente. A senhora calça crocs, veste umas calças largas e uma t-shirt, e/mas tem à cabeça um lenço, longo atrás, à maneira das judias "do Oriente", isto é, originárias dos países árabes. Um pouco "off", talvez, veio ter comigo, apertou-me as mãos e juro que ouvi dizer-me que "nos amava". Ela? Deus? A que "nós"? Não sei. C chegou de carro e levou-me para a universidade. Começámos pela administração, onde mostrei a carta de convite e me foi dado um papel para levar para o gabinete de segurança. No gabinete de segurança emitiram-me um cartão de livre acesso. As funcionárias comiam salada de arroz frio, vegetais e atum. Daí para a biblioteca, mais um cartão. Depois para o secretariado do Departamento de Românicas e Estudos Latino-Americanos para me ser atribuído um gabinete; de seguida para a secção de computadores, para passwords, e daí de carro para o outro campus, o de Givat Ram, para assinar o contrato do apartamento. Mais tarde voltaria lá sozinho para obter o cartão de acesso ao ginásio. Tudo decorreu com facilidade, rapidez, e uma boa-educação q.b., por vezes com uma dose de frontalidade que os mais sensíveis poderão entender como rudeza, mas que me parece ter mais a ver com uma cultura que ainda guarda traços do igualitarismo dos tempos pioneiros da fundação do estado. Traços que ficam, apesar dos tempos e dos eventos. Uma universidade é uma universidade, mas nem por isso o ambiente é menos relaxado. Salamaleques, nenhuns. Mais tarde, na rua, em torno da estação central de autocarros, a balbúrdia humana, ela sim sem salamaleques mesmo, sem filas para nada, colorida, variada. Para o observador "branco" e estrangeiro, o que salta à vista, o que parece "destoar" das semelhanças, são os e as ultrareligiosos/as, os e as orientais, os judeus e as judias etíopes e, claro, esse ícone do Israel consumido lá fora que são as jovens e os jovens soldados, passeando com a mesma atitude que teriam num shopping ou numa esplanada de café mas por acaso fardados/as. Ainda trato de um cartão de telemóvel local e, depois de ter descido a Jaffa Road, com um intervalo para café numa esplanada de "alternativos" (onde o empregado me diz "let me give you the sky" ao fechar o guarda-sol) apanho o elétrico de volta para o meu bairro, Bet Hakerem, e vou ao supermercado. Ao lado da caixa, estirado sobre umas sacas, um jovem fala árabe com alguém que passa. Faz lembrar uma figura de Pasolini, lânguido, de t-shirt subida, acariciando a barriga. Sorrio-lhe ao sair. Ele pisca-me o olho...
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Rehov Yaffo (Jaffa Road) |
C é de origem argentina, está na casa dos trinta, tem dois filhos pequenos e é divorciada. No nosso "tour" pela universidade confessa saudades de ser estudante, ao ver que é dia de eleições para a associação. Explica-me quem são os candidatos. "Os azuis são trabalhistas - mas eles não são nada trabalhistas... os vermelhos são da esquerda radical... os amarelos são do novo partido de jovens que querem melhorar Jerusalém". Mais tarde queixar-se-ia deles, de como não mostram vontade de integrar mais árabes. Queixa que se estende a mais movimentos sociais - de que eles são um segmento - do tipo dos que têm aparecido nos últimos tempos no resto do mundo. C considera-se uma ativista e uma feminista (e fala-me dos seus amigos envolvidos em questões queer e da conferência e festa para as quais não se esquecerá de me convidar) e não gosta que tantos ativistas insistam em dizer que "não são políticos". "Não querem é tomar posição sobre o conflito, porque têm opiniões diferentes". Para C o conflito é já insuportável e aponta às lideranças políticas israelitas e palestinianas a pouca vontade de avançar com soluções. Segundo ela as mudanças económicas, o discurso neoliberal dominante, o "fim" da política levam a uma situação em que as partes (as suas lideranças) parecem preferir o status quo, a situação de facto. Eu pergunto-me se, ironicamente, não acabará por ser justamente isto a criar a "solução", numa espécie de dois estados formais mas em total integração económica e de circulação de pessoas (a primeira já existe, a segunda não), em vez da solução dos dois estados (com uma inviabilidade prática do palestiniano) ou da de um estado binacional (com o esmagamento demográfico dos judeus)... Para C as coisas são claras: demasiadas décadas de conflito e a necessidade absoluta de os palestinianos poderem ter uma vida digna e decente.
Na rua, a medalha de honra do turista: 3-pessoas-3 perguntam-me direções em hebraico (e, num caso desconcertante, em... russo)!
Adoro estes textos! Ai, aquele "Let me give you the sky" tão apaixonante... <3 Continua Miguel! Quero ler muito mais!
ResponderEliminarRomeu
Fascinante...
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