quarta-feira, 23 de maio de 2012

moda/modéstia


Parece óbvio dizer-se que "a burka" (já lá iremos...) esconde mais do que revela. Mas há vários erros nisto. Ela também revela mais do que esconde, nomedamanete a pertença religiosa e a afirmação de certas normativas a ela associadas (desde logo o ordenamento de género). E mesmo quando se fala daquilo que ela esconde, não sabemos exatamente o quê - que vestem as mulheres por baixo? Que fazem quando estão entre companhia feminina? Que fazem em casa?

Aqui convem fazer um parênteses e dizer: a burka é uma forma específica de vestuário, de um contexto étnico e religioso concreto, não de todo o Islão. Tornou-se, sobretudo no Ocidente, num ícone e numa metonímia de todo um espanto e repulsa perante o Islão mais conservador. Ela serve tanto ou mais para "falar" da islamofobia como para falar da solidariedade com a opressão das mulheres. Acaba por esconder várias outras coisas: dos feminismos islâmicos até à diversidade de formas de organização do género em países islâmicos, até às negociações e manipulações que mulheres e homens de diferentes identificações sociais fazem das regras de vestuário.

É já sabido como no Irão, por exemplo - onde não há, em rigor, burka - muitas mulheres investem no que vestem por baixo do traje islâmico, para uso caseiro. E nem sequer comecemos a falar dos múltiplos sentidos e interpretações e usos do traje islâmico em termos quer de relações de género, quer de decisões individuais, quer de afirmações étnicas ou políticas (basta recordar os célebres e muito confusos debates sobre o "véu" em França).

Tudo isto a propósito disto: não é só no Islão que o traje feminino é alvo de atenção religiosa. Já nos esquecemos das posturas cristãs em relação a isso, talvez porque muitas delas se diluiram no que depois parece "simples" código cultural. Também no judaísmo ortodoxo vamos encontrar esta questão. Ela é complexa: vejo nas ruas mulheres que claramente seguem os preceitos religiosos das vertentes ortodoxas mas que o fazem com um estilo que revela que a sua adesão às normas foi isso mesmo, adesão; e com motivações que quase roçam o new-age ou uma espécie de entusiasmo "étnico". Lado a lado com outras em que se adivinha a enculturação desde crianças em certos códigos de modéstia, impostos e controlados. Haverá de tudo. Penso na minha irmã adotiva americana (judia), que era uma miúda "normal", de classe média alta, fascinada com maquilhagem, barbies e vestidos e que hoje, já adulta, se converteu a uma identidade ultra-religiosa - usa saias compridas, peruca ou lenço, cobre os braços e as mãos.

Nada mais errado do que pensar à maneira das ciências sociais ou da política "modernas" (dos finais de século XIX e da primeira metade do século XX), imaginando uma dicotomia clara entre iluminação, emancipação e secularismo, por um lado, e trevas, submissão e religião pelo outro. (Muitos dos fundadores do estado de Israel pensavam assim e talvez por isso não se tenham importado de conceder aos rabinatos a gestão de muitas áreas do direito civil. Pensavam que o seu projeto laico iria triunfar "naturalmente", com a "evolução" da sociedade. Bem, enganaram-se)

Veja-se este anúncio a fatos de banho dirigido sobretudo (mas não só?) às mulheres judias religiosas (aqui "religioso" quer dizer "super" ou "ultra" religioso, com implicações politicas e de uso do espaço público e não como mera referência às convicções individuais de um "sentimento religioso privatizado") com que me confronto todos os dias ao abrir a página do Ha'aretz, um jornal liberal e muito crítico do crescimento da ortodoxia religiosa: modéstia, luxo e moda são significados que vão juntos e não, ao contrário do que diria o pensamento dicotómico, oxímoros. A tarefa antropológica mais difícil de todas é compreender - sobretudo compreender o que nos dá comichão...



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